quinta-feira, 5 de abril de 2012

Um Certo Capitão Rodrigo

Foi-me impossível não desviar do livro que lia a minha atenção para a sua presença ao entrar no jardim da casa onde me encontrava a ler.
Pensei sempre não ser uma pessoa impressionável facilmente, seja a frio ou a quente.

Primeira coisa que lhe reparei, no alto do seu metro e mais do que noventa foi a suavidade com que da cabeça morena retirou o chapéu e o levou ao peito, perguntando-me cordato se podia entrar.

Não era minha a casa onde Daniel entrava, apenas um porto de abrigo temporário numa meio improvisada viagem pela américa do sul que o apelo de largar tudo e partir até lá longe bem distante me levou a ali naquele instante me encontrar...

Fazia da pequena cidade de Leopólis no estado do Paraná dormida nesse dia, fiz de um sorriso e um aceno autorização para que entrasse.

Perguntei-lhe, reformulando o meu português sem o seu sotaque ao tempo verbal que sabia ser o mais fácil para me fazer entender.

Sorriu-me, esticou-me a mão e apresentou-se.

Era um outro ritmo, outro tempo sem pressas o daquela cidade e confesso que muitas vezes me obrigo a abrandar ao mesmo ritmo preguiçoso de um fim de tarde sobre o alpendre naquela casa pequena, pobre mas caramba...

Para mim um bastião.

Daniel tinha bigode negro como o seu cabelo, tinha as mãos gastas de quem as usava em trabalho duro que, imagine-se, no meio do mato, lá na perdido na sua casa rodeado de ninguém... era por prazer e opção o oficio de carpinteiro.

Reparo-lhe numa monstruosa faca de mato, usada e gasta que trazia à cintura.
Reparo-lhe que o olhar fugia de mim para o livro que eu entretanto repousara no banco ao meu lado.

O Daniel era um homem sincero, directo. Entoava as palavras sem pressas, com uma fantástica dicção.
Conversámos durante horas, maioritariamente sobre livros até chegar quem ele procurava, o dono da casa onde me encontrava.

Apertou-me a mão antes de partir, apertou a mão do meu anfitrião e sorrindo na minha direcção afirmou feliz- Eu e o André falamos a mesma língua.

Acenei-lhe novamente e ele partiu.

Daquela cidadezinha perdida no Brasil fiz-me à estrada.
Fui à Argentina, ao paraguai, fui para Buenos Aires sem ter onde dormir, voltei para o Brasil e fiz horas e horas e horas... e mais horas de estrada em carros sem rádio, sem cintos... mas isso podia perfeitamente ser por mim narrado n'outra altura, n'outros textos.

Poucos dias antes de regressar à pátria, desenhava sentado num banco na praça da cidade de Leopólis quando oiço- "ò Português!!!".
Era como toda a cidade me chamava, conhecessem-me ou não.
É desconcertante sermos o primeiro não brasileiro que alguém viu... quanto mais uma cidade quase inteira.
É desconcertante fosse onde fosse alguém que não conhecia, não sabia quem era, saber o meu nome e fazer questão de se sentar do meu lado.
Conversas que se arrastavam durante horas...

"Ó português" era geral, o André vinha depois sentados ao meu lado, fosse num banco de um jardim, fosse na sua sala na sua casa onde me convidavam para entrar e sentar, fosse numa galinhada - frangada é galinha roubada, e isso enfim, não se admite publicamente- de convívio pela noite dentro...

Para minha surpresa, quem me chamava era nada mais do que o Gigante de chapéu, mochila de couro ao ombro e sorriso abaixo do bigode que caminhava na minha direcção.

Apertou-me a mão firme, notoriamente satisfeito por me rever.
Perguntou-me quando me ia embora, respondi, reagiu com um enigmático sorriso e partiu.

Tinha a mala pronta, estava pronto para regressar ao meu mundo, era o dia.

Pouco depois do almoço de despedida, o Daniel entra pelo mesmo jardim onde o conheci adentro, abraça-me e sorri.
Entrega-me um embrulho, eu entrego-lhe um embrulho também.

Riu-se e afirmou convicto- você não sabia que eu vinha cá hoje...

Eu confirmei-lhe a afirmação, sublinhei que o plano era ser-lhe entregue a encomenda caso não tivesse o privilégio de o rever.

Acenou-me que abrisse a sua prenda, fiz-lhe sinal que me acompanhasse com a que lhe dei.
Nas suas mãos desembrulhou-se o livro que eu lia quando nos conheceramos.
Nas minhas o livro que me falara  sentado ao meu lado.- um certo capitão rodrigo? não conheço...

Apertamos a mão a gosto, sorri-lhe e antes de o deixar partir disse-lhe- tinha toda a razão, nós falamos a mesma língua.




Um comentário:

Hathor disse...

Um dia fiz algo do género mas com O Principezinho.
Há pessoas que amam ler.
Eu sou uma, se quiseres mandar uns livros aqui para o fim do mundo seram bem vindos ;)