quarta-feira, 15 de outubro de 2008

Abre a janela do teu quarto mulher!

colocou a mão no peito. confirmar vida, prova que era humano, estava vivo e coiso e tal.
as mãos estavam frias, arrepiou-se, bom sinal.
era por alguém?
era com alguém?
era para alguém?
ou ninguém que se encontrava alí?


era humano ao menos, bom sinal talvez, prelúdio de grandes dificuldades...
graça e virtude nos seus desenhos, empenho e talento... pelo menos vontade.

o que já era muito bom.

qualidade é sobrevalorizada quando o que interessa é o convívio, é a piada que somente dois num jantar de trinta se desfazem a rir.

respirou fundo e deu as condolências às suas hesitações, foram uma boa companhia, fiel e presente durante muito muito tempo na sua vida, mas tal como aquela ex que nunca se calava... teve que as mandar abater.

tirou os sapatos
porra, descalçou-se e sem pensar...
correu pela areia até ao mar... a caminho desnudou-se camboleante, mas sem perder direcção ou desejo.

gelada, dolorosamente gelada no rosto primeiro em pequenas gotas, depois nos pés até mergulhar e todo o corpo estremecer, se soltar e viver estridente

cordão umbilical cortado, falta todo o resto.
oh se falta... todo um resto de anos a acumular pó até ao presente, até despir o casaco molhado num dia de sol

até a voz e a imagem diante do espelho... estarem finalmente ao mesmo tempo.
era tempo de coisas novas, diferentes...

ou da mesma coisa mas em diferente

mudar radicalmente de café e morango no gelado para morango e café

deixar para trás no tempo as meias-de-leite e pedir um galão

deixar de ser um canalha para as mulheres e ser somente um pulha, um pulha galante obviamente

como se ele já não fosse o mesmo, e alguém distante, observador isento de si mesmo, do seu passado
e tudo ter recomeçado, diante de si lápis de cor - dos comestíveis óbvio, e folha branca

era o momento que ansiava, o momento em que se libertava e arrancava para a curva antes da meta isolado e distante... mas acelerava

só porque podia acelerar...

e sentir o vento veloz no cabelo.

vestiu-se, meio molhado -o que isso importa, e afastou-se do mar...
sorria, sorria com o rosto todo, com todo o ser
era mais que humano, era energia e vida, era o que ia fazer antes de ter feito
era rodopiante e determinado, era grandiosamente pequeno no gesto que conspirara
um pequeno gesto.

um pequeno gesto criminal.
(afinal era uma doce delinquência, arquitecto a pintar nas paredes...)

fitou-se no seu reflexo, o seu rosto antigo como quem aguarda perdão...
pediu-lhe desculpa, mas tinha que o deixar partir...
depois dar-lhe-ia noticias, mas a decisão era final definitiva, e irreversível

(já tinha as mãos todas sujas de amarelo...)


bateu-lhe na porta de casa, não da rua como os estranhos, mesmo na madeira de quem não precisa de convite para chegar tão perto
aguardou.

sorriu-lhe

atirou-lhe um beijo sem pedir licença, invadiu-lhe a boca voraz mas ternurento até sentir que era reclamado e não um invasor
sujou-lhe roupa e cabelo, pele e rosto com as mãos de amarelo


entrelaçou-lhe os dedos na sua mão e arrancou com ela pelas escadas até à rua
contornou o prédio até ficarem na rua da janela do quarto dela, na rua onde tantas vezes aguardara vê-la na janela surgir... venenosa nos seus encantos
mulher demónio deslumbrante

- disseste-me sempre que gostavas de flores... e estava tudo fechado...


2 comentários:

Alice disse...

mais uma vez frase de genio e uma ideia brutal escondida na imagem.

Anônimo disse...

Um final lindo esplendoroso e cheio de luz!!!
Adorei!
Adorei o final como sabes :)
Um final inesperado como sempre, mas desta vez duplamente surpreendente, porque deixaste fugir sem pecado um pouco do teu coração e do romantismo que tens dentro dele.
deixa-o sair em liberdade mais vezes.. ousa.
:)
..não sei se já disse que adorei a parte do fim!! ..capaz de comover qualquer ser sensível.
Bravo!