quinta-feira, 26 de julho de 2012

Triciclo

Caminhava abstraído quando subitamente foi puxado pelo braço.
Voltou-se e hesitou, familiar mas estranho... com barba... ia atirar o nome que lhe ocorrera ao pensamento quando esticou a mão para cumprimentar o ex colega de faculdade, mas não foi uma mão aberta que lhe foi devolvida, foram os braços que o rodearam, abraçando-o. 

- Tu! cum caralho, eh pá... estás bom?

Sorriu e retribuiu o abraço, apontou para um café a poucos metros de onde estavam e obteve um aceno de aprovação em resposta.

Sentaram-se.

- Tu estás carregado porra, e essa barba...

- É tudo o que tenho, este saco, a mochila e... pronto.

Hesitou, mas que raio... tudo o que tinha?

- Explica... e explica o que foi feito de ti! já não te vejo desde o quê... 2007?

- Sim 2007, uns 4 meses antes de partir

- Tinhas ido para Macau não era? não percebi o que te aconteceu, mas como estás? vens de férias? estás bem?

- Está tudo melhor do que bem, e... o que aconteceu... olha, eu e tu... sempre fomos homens inquietos, moldados por qualquer coisa que não está aqui, está longe.

- Calma, pera, organiza-te... e...

- E tu sabes bem do que falo. Tu sabes melhor do que ninguém a um ponto que foste tu que me deste o click que me fez sair daqui...  eu era uma criatura desconfortável, entediada. o trabalho era bom, muito dinheiro. Tinha uma namorada que me era muita coisa boa, mas não era ela, não era com ela, não era aqui que eu sabia devia e podia... queria passar os meus dias, qualquer coisa não estava bem.

- Sim, lembro-me de falar contigo sobre isso...

- E tu disseste, tu disseste naquele aniversário... no do triciclo!

- Qual?

- Que gamaste o triciclo do irmão da aniversariante e vieste disparado pela rampa do portão a descer naquela merda, passaste à frente da mesa onde tava toda a gente a gritar- BOOMSHAKALAKA...

- Oh deus...

- e 2 metros depois tentas desviar-te de uma pessoa guinando para a esquerda e foste-te espetar com o triciclo no lancil e tu lançado a voar em câmara lenta até caíres de tromba na relva do jardim...

- Mas... como é que isso...

- Mais tarde, nós estávamos a conversar no terraço depois do jantar e tu contavas-me uma coisa qualquer sobre corrida, sobre correr, dai falaste da superação da inacção, daquela sensação que nos dá quando se corre que nem um passo mais! nem mais uma passada e qualquer coisa se recusa a parar de mexer as pernas e essa teimosia subitamente enche o peito de ar e acabamos por correr com um sorriso de quem está a fazer qualquer coisa de grandioso mesmo que seja uma corrida de merda e estejamos todos rotos... e tu, tu usavas muito uma expressão " um homem que corre para fugir de si mesmo ", e eu perguntei-te qual era a piada dessa situação idiota, afinal, não se consegue fugir de nós mesmos... e tu explicaste-me a razão.

- Um homem pode colocar-se distante de si mesmo, colocar-se num mundo que não o seu, provocar uma acção que o afaste, que mude as variantes que o envolvem...

- Exactamente isso! eu era eu em piloto automático, estava aqui sem estar... e não consegui ver-me mais com dinheiro e infeliz, sem passar por aqueles dois momentos que eu sempre te invejei...

- Estou perdido, momentos?

- Tu sempre falaste do momento em que nos encaramos, em que caímos pesados sobre nós e nos doí o somatório de todas as partes que nos levaram até aquele instante e sentimos que perdemos qualquer coisa até ali...

- E o outro?

- Já te conto, tu não tens pressa? tens tempo? não ias a algum lado quando te parei há pouco?

- Tranquilo, continua

- Eu fui para Macau, tinha lá um gajo que jogava comigo há bola a trabalhar que me disse que orientava qualquer coisa para eu fazer, fiquei em Macau meio ano e odiei aquela merda.
Estava sozinho, estava no começo de qualquer coisa que não sabia bem o que era, longe da minha zona de conforto.
Estava fisicamente distante do meu mundo, mas ainda lhe pertencia totalmente, ainda era o mesmo gajo que precisou de fugir.
Arrastei-me por Macau meio ano, aquela merda era húmida como tudo, desagradável de nem respirares, e pequeno, sentia-me apertado lá dentro e não era isso que eu queria.
Fui para a Italia, fiquei lá ano e meio, trabalhei numa loja de fotografia e em dois bares, arranjei uma italiana...

- Ficaste onde?

- Muito sitio, estive em Milão e Padova, estive em Turim, mas fiquei mais tempo por Milão até que conheci um gajo que trabalhava num estaleiro em Ravenna e fui para lá, só estive lá umas semanas até que conheci um Irlandês que me falou que o primo tinha-se casado num barco, que a família do gajo tinha o barco e pescava em alto mar e eu perguntei ao gajo se era fácil entrar nesse meio e quando me perguntou se estava interessado... dei por mim a responder que sim, bazei de Ravenna e perdi dinheiro com a cena de não ter feito um Mês, vi-me à rasca no fina do mês a seguir.

- Tavas a trabalhar num porto em Ravenna...

- Estaleiro navel, fazia por exemplo a limpeza de navios com jactos de areia...

- E foste para a Irlanda...

- Pescar, passar dias e dias no mar a dormir 30 minutos... e tu lembras-te quando fomos ao bairro...

- Se envolve um triciclo não, recuso-me!

- Não pá, fomos ao bairro e a tua gaja meteu-se com uma Irlandesa por causa do cabelo dela e quando o namorado da Irlandesa disse o nome dela, que era Sally tu começaste a fazer piadas com a música dos Pogues e os gajos partiam-se todos a rir histéricos e a tua namorada ficava a olhar para vocês toda trocada... ainda estás com ela?

- Não, ela foi para Barcelona um ano depois de te ires embora e acabamos ai, ela está de volta a Portugal por acaso... mas continua

- Quando te espetaste com o triciclo ela foi a pessoa que se riu mais... mas também foi ela que te foi buscar o álcool para desinfectares o cotovelo...

- Não falemos dela, estavas a contar...

- Fiquei em Tarbert, numa zona chamada Dingle a maior parte do tempo até que me fartei da rotina há coisa de dois meses, e decidi parar.

- Foste para?

- Lado nenhum. Passeei pela Irlanda... fui a Dublin que só tinha visto de passagem, andei por cidadezinhas pela ilha e foi então que encontrei o segundo momento, isto coisa de um mês atrás...
Fui de bicla até uma cidade perto de onde estava e a meio caminho tive que abrandar numa parte da estrada que estava cheia de lama. Parei e fui com a bicicleta a pé um bocado e comecei a olhar à volta, tudo verde.
Saí da estrada, comecei a pedalar sem fazer a menor ideia para onde estava a ir e pensei que podia subir a colina e depois voltava para trás.
Cheguei ao topo da colina e foda-se, aquela merda era tão bonita... todo o vale que eu via dali... tive que me sentar um bocado, e um bocado foram umas boas horas que o sol andou imenso sobre mim.
 Procurei, procurei o momento em que tudo o que te levou aquele momento cai sobre ti pesado e te esmaga e nada...
 Procurei o desconforto de não encontrar o que quer que seja que me levou a partir daqui e andar tanto tempo à procura que não sei muito bem o que é... e nada.
Respirei e ... estava tão bem, tão limpo.
 É esse o momento, o momento em que te encontras e dás por ti livre, dás por ti tão distante de todas aquelas coisas que te rebentavam, te arrasavam... e olhas para elas e elas não mandam em ti, até lhes esboças um sorriso de simpatia... estás a rir, mas foste tu que me falaste também deste momento e olha que... eu juro... eu acho que tu ainda não...

- Não estamos a falar de mim...

- Mas tu já sabes do que vais à procura! eu não fazia a menor ideia...

- Porquê o saco? vais partir? vais para onde agora?

- Eu acabei de chegar! Tive que tratar de várias coisas neste ultimo mês para voltar... de vez.

- Pera, acabaste de chegar e estás aqui? foda-se, os teus pais?

- Apeteceu-me ir a pé até casa, acabar a coisa a pé para sentir bem a cada passo o estar mais perto de casa

- Ainda é um bocado daqui até tua casa...

- Não tenho pressa...

- Mas podemos ir andando! concedes-me o privilégio?

- Foda-se, o privilégio é meu!

Fez uma piada sobre improvisarem 2 triciclos, mas ia ser complicado passar com eles a Rotunda do Marquês àquela hora.

Caminharam uma hora em meia, nunca em silêncio.

Ajeitou a mochila e insistiu com o amigo que podia levar o saco de viagem sozinho, que era pesado sem sucesso.

Estranhou prédios novos, riu-se de novidades e de todo um mundo que reencontrava com ternura.

Até que à entrada da sua rua o amigo parou, entregou-lhe o saco.

- Obrigado, obrigado por partilhares isto comigo mas... acho que está é uma viagem que deves terminar sozinho, por ti.

- Tu... tu consegues às vezes ser o gajo mais poético, mais profundo e sábio que conheci pelo mundo fora... e consegues ser o mesmo gajo que...

- O triciclo eu sei...

- O mesmo gajo que estragou a mesa dos pais da namorada a abrir uma garrafa de cerveja

- Pensei que a carica tava solta! ia fingir e fazer a piada para a irritar, não saiba que estava tão presa eu não batia assim... vá, tens que ir, não deixes os teus pais à espera...

- Eles não sabem que voltei...

- Se eles não te aceitarem em casa podes ficar na minha

- Ou na da tua ex, já que tá solteira e tu és burro e não emprenhas a gaja e não te casas com ela!

- Havias de apanhar os teus pais a fazerem um sexo muita badalhoco agora quando entrasses em casa que era bem feito!

- É estranho eu estar com um certo medo? de subir o resto da rua e meter a chave à porta?

- Guardaste a chave de casa este tempo todo?

- ah... é a chave de minha casa, ia fazer o quê com ela?

- O que vais fazer agora, subir a rua, meter a chave à porta e entrares em casa, finalmente.

2 comentários:

Hathor disse...

:) bom voltar a ler-te com esta intensidade :)

Pusinko disse...

De 2007 a 20XX, sem ver os pais?
Nunca voltou?
:o