terça-feira, 10 de maio de 2011

Momento de Pausa #2

Dor na perna direita... checked.
Dor na coxa esquerda, double checked.

Manteve o ritmo, manteve-se em corrida.

Corrigiu a postura, concentrou-se em apoiar apenas a parte da frente do pé, descartando o apoio do calcanhar e projectou os pés para trás, como se puxasse o chão debaixo de si para as suas costas.

Endireitou a coluna, corrigiu a postura e tudo isto feito, concentrou-se apenas no vento fresco ao pé da água, na maresia, um dos motivos que o levavam a sair de casa tão cedo e ir correr ali, paralelo à Rua da Junqueira, do lado do Rio.

Sem surpresa, deixou de sentir dor, os pulmões renasceram e sentiu-se invencível, capaz de correr sem parar de Lisboa a Tóquio, quem sabe fazer uma loucura e ir a correr até ao Barreiro...

São horas pouco próprias para correr. São horas, momentos no tempo que estar só somente com os seus passos sobre o alcatrão, sobre a relva e um pouco de gravilha também, sozinho com o lastro que teima em não se soltar.

A correr contra si mesmo, contra os seus pensamentos.

Em esforço, tentar de algum modo aumentar a cadência, acelerar até não poder mais e o coração rebentar. Puxar de dentro da pele a carne e ser livre.

Livre, distante e correr mais depressa e...
E não conseguir mais.

Rebentou, quebrou e estoirou.

Tombou de joelho sobre a relva e apoiou o braço na outra perna.
Fora derrotado, vencido e perdedor.

Varreu da testa o cabelo suado para trás com a mão, tentou controlar a respiração.
Viu um banco e num hercúleo esforço cambaleou até ao mesmo.

Era o mesmo banco da outra vez.

Se tinha diante de si o Tejo, atrás tinha o Hospital onde nascera.
Tinha à direita todo um mundo de recordações, à esquerda todo um mundo do que podia ter sido (com ela) e nunca o fora.

Estava então ao centro do seu mundo.

Riu-se e tossiu, cansados e maltratados os pulmões.

Apeteceu-lhe levantar-se mas não conseguiu.

Estava preso no centro do cruzamento simbólico do seu ser.

"I'll chop off my hands too;/For they have fought for Rome and all in vain"

Seria então em vão como Titus? tudo o que o levara até aquele ponto, naquele instante, sentado sem forças para continuar?

Respirou fundo e não tossiu.
Era uma longa caminhada até ao carro e não se via a levantar, muito menos a andar todos os quilómetros que o separavam da viatura...
Era só levantar-se, virar para a esquerda... e sempre em frente.

Disse para si mesmo- bem, mais vale agora que nunca.

Apoiou o braço no encosto de pedra, firmou a mão e levantou-se.
Ficou por uns instantes de olhos fechados ao sabor do vento.

"fought for Rome and all in vain"...

Virou-se para a sua esquerda e avançou a perna, sentiu o pé firme no chão.
Avançou a outra perna e... era só ir devagarinho até ao carro, era aceitável não conseguir mais e admitir que não conseguia, que afinal era apenas um homem, um homem muito cansado e fora de forma e...
E era perfeitamente desculpável, não tinha por que se sentir mal ou...

- Juro que não te perdoo!!

Gemeu e inverteu a direcção.

Em crescendo acelerou os passos e recomeçou a correr.

Era tudo menos aceitável, era tudo menos o seu jeito de ser.
Haveria um dia que ia desistir de si mesmo, não hoje.

Um pé e depois o outro, era só repetir a mecânica da coisa e se possível, mais veloz.
Viu finalmente a fonte, o palácio e atravessou aproveitando o verde do sinal.
Contornou a fonte e avançou para o banco de pedra onde nasceu O Belenenses.

Sorriu. Lembrou-se da Hanane Sentada a refilar-lhe em Marroquino que lhe tava a dar cabo dos pés e lhe devia uma massagem.
Lembrou-se que o pessoal gosta de vê-lo é no Restelo, mas se for fora jogar lá estaremos com ele a vibrar...

Lembrou-se da bola de borracha da inauguração do estádio! que tinha guardada na mesa de cabeceira, bola que em tempos fora do seu tio que nunca conheceu com quem partilhava o primeiro nome...

Abrandou e deslizou a mão pelas costas do banco e acelerou outra vez.

Lembrou-se que esse tio morrera nos braços da sua Avó com 8 anos.

Lembrou-se de viver apavorado até aos 9...

Caramba, era tão novo...

Atravessou novamente e voltou para ao pé do rio, de regresso ao carro.

Voltava triunfante.
Já não imaginava um tempo em que estaria toda a poeira assente em seu redor, futuro idílico de um tempo que não vem.
E que dia após dia sublinhara a forte hipótese de nunca vir.

Esse tempo é agora.

Com jeitinho... para sempre.



Nota - Se eu fosse tão expedito a vencer a preguiça de cortar o cabelo, fazer a barba como sou a rebentar-me a correr não tinha o meu look sexy de combatente revolucionário da América Latina nos anos 60.

A citação em inglês é da peça de Shakespeare - Titus.

"onde é que gostas de vê-lo, no Restelo, mas se for fora jogar lá estaremos com ele a vibrar" é parte da letra da música Ser Belenenses

A menção ao Barreiro é para a MJ.

Quanto ao poder ser em vão: - "Por ser em Vão é que é belo" - Cyrano de Bergerac

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