quarta-feira, 6 de julho de 2011

Momento de Pausa #3

(Go ahead go ahead throw your arms in the air tonight)


Tinha sido uma péssima ideia ir correr.

Estava demasiado rebentado do esforço da noite anterior.

Doía-lhe primeiro o pé direito, não quando o apoiava, mas quando empurrava o chão para trás num novo passo, em esforço.

Tinha um certo prazer masoquista de se superar quando era suposto já ter parado há muito tempo.
Ia sorrir com a ideia mas estava demasiado cansado.
Não que apreciasse a dor, mas sim a ideia de não se deixar vencer por ela, pela voz que lhe gritava que já era o suficiente, ninguém o ia julgar, ninguém o poderia chamar de fraco.

Para além disso... estava a correr sozinho.

Depois do pé chamava-lhe à atenção - com uma certa urgência - a ausência de fôlego.
Vincou a vontade e teimosia, obrigou-se a respirar com força, com ritmo.

Sabia que após a curva que se aproximava teria uma subida, coisa de 80 metros de forte inclinação.

Acelerou.

Sentiu a dor ficar para trás, distanciou-se do lamento que gemeu da falta de pulmão e empurrou-se mais depressa para a frente.

Não sentia as pernas, não sentia que estava ali.

Era como um espectador transportado pelo seu corpo.

Debaixo dos seus pés o caminho começou voraz a tornar-se íngreme, perdeu velocidade mas não o "momento".

Um pé, depois o outro. Por vezes evitou cair empurrando o chão com as mãos e manteve-se em corrida...

Combinou tréguas quando no topo, era só aguentar um pouco mais...

Cerrou os dentes e os punhos, era só um pouco mais...

Mais um passo, mais uma queda, mais uma vez era o pé que lhe fugia e o levava a projectar as mãos ao chão.

Faltavam as escadas...



Ergueu-se e respirou.

Limpou o suor do rosto e sorriu.

Avançou devagar e levou a palma da mão à porta do prédio.

Apeteceu-lhe carregar na campainha como anos antes e com sorte ela abria-lhe a porta, sentava-se ao seu lado umas duas, três horas a contar-lhe histórias sobre a sua Avó e piadas dos anos em que trabalhara ali ao pé, no hospital onde não por acaso ele nascera e ela morrera.

Tinha saudades dela.

Afastou-se da porta e esperou até respirar normalmente, até não ser um acto de desafio e coragem encher os exaustos pulmões de ar.

-"Travessa do conde da Ribeira... que deus!"

Pensou sobre o seu feito, a sua conquista.
Depois lembrou-se onde tinha estacionado o carro e o quanto teria que andar até ao mesmo.

Sim, andar, que correr... fora de questão.
O que lhe passara pela cabeça? era simples e estava controlado, corria ao longo do rio até à Torre de Belém e voltava para trás.

Inspirou, com força e avaliou-se. Expirou o ar e com este as baixas no seu mundo desde Setembro, a Avó , a Irmã, o tio , a cadela e a namorada.

Era gente a mais.

Desceu os degraus e atravessou.
Voltou para trás e para cima o rosto para a janela onde ela habitualmente se despedia de si.

Avançou o pé direito.
Este doía-lhe selvaticamente.
Avançou o esquerdo e embalado pelo passeio a descer... ganhou um pouco de velocidade, nada de loucuras, iria depois pela Junqueira até ao carro em passo tranquilo que ainda tinha um dia inteiro de trabalho pela frente...

Fez a curva e acelerou...

Sorria.


(Para ser grande, sê inteiro: nada
Teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa. Põe quanto és
No mínimo que fazes.
Assim em cada lago a lua toda
Brilha, porque alta vive.)



Notas :

-a primeira citação é da letra da música Runaway dos The National.

-A segunda não admito que não a reconheçam como sendo do Fernando Pessoa- pontos extra a quem a ler na voz da Maria Bethânia.

Nenhum comentário: